quarta-feira, 29 de agosto de 2007
Manifesto - no Ondas
O estado das coisas
Manifesto para que Portugal seja a "Califórnia" da Europa
Houve um tempo em que queria ser surfista profissional. Na verdade eu fazia bobyboard, mas isso, para mim, nunca foi diferença, eu era, sempre fui, surfista e para mim ser bodyboarder profissional era ser surfista, ou vice-versa. Depois a vida obrigou-me a seguir outro caminho e hoje trabalho para poder surfar em vez de ter no surf o meu trabalho. Isso não é nem bom nem mau, é assim. Não me arrependo, nem me culpo por nada. Fiz muitas escolhas no caminho e gosto do resultado a que cheguei. Mas nunca perdi a chama da paixão inicial pela ideia de uma vida unicamente dedicada às ondas e a tudo o que gira em torno das ondas. Vou ao mar sempre que posso, colecciono revistas, compro filmes na net, sigo os campeonatos on-line enquanto preencho os mapas de contabilidade, colecciono pranchas, participo neste blogue, sou surfista. É nessa condição que escrevo isto.
Olhando de fora o estado do Surf em Portugal e no mundo, algumas coisas saltam imediatamente à vista e merecem ser analisadas. Nos últimos tempos, o universo das ondas em Portugal tem estado em grande agitação. Uma sucessão de excelentes resultados, tanto a nível individual, como por equipas, trouxeram ao Surf e ao Bodyboard português uma projecção e um reconhecimento inusitados. Se for bem aproveitado, acredito que este momento pode ser o início de uma extraordinária época para Surf, Bodyboard e outros desportos de ondas em Portugal. Mas para que isso aconteça importa, talvez, parar um pouco para pensar o estado das coisas. Perceber como chegamos aqui, o caminho que foi percorrido, os erros e os sucessos, o que correu bem e o que correu mal. Onde estão hoje o Surf e o Bodyboard em Portugal? Não quero, de maneira nenhuma, regressar à velha discussão Surf vs Bodyboard, quem é melhor, quem se atira mais, quem tem melhores resultados, quem é mais reconhecido, blá, blá, blá... Já ando nas ondas há muitos anos e já levei com todos os insultos, já ouvi todos os disparates e tive essa conversa tantas e tantas vezes que não consigo mais. Para mim, e esta é talvez a única certeza que tenho na vida, ondas são ondas, independentemente da maneira como as gozamos. Desde o puto que todos os verões nas férias faz carreirinhas na praia, até aos pescadores de Rabo de Peixe que apanham vagas para entrar em porto, passando por body, knee, short, fish, long, tow, paddle e todo o tipo de boards, ou não boards, para mim são todos surfistas pela simples razão de que o Surf não está no instrumento que usas para apanhar a onda, mas esta na própria onda, na maneira como a aproveitas e no prazer que tiras dela. A única discussão que penso que vale a pena ter hoje em dia é sobre o estado da competição e, por maioria de razão, o estado da indústria e do negócio do Surf.
Olhando para o mundo da competição em ondas, em Portugal e internacionalmente, mesmo o mais desinteressado dos observadores percebe que hoje o dinheiro está todo metido num conjunto de mais ou menos 100 tipos em pranchas a maior parte das vezes pouco maior do que 6’ 0’’ e que entre o CT e o QS vão fazendo campeonatos pelo mundo em ondas umas vezes melhores outras vezes piores. Mesmo outras provas sancionadas pela ASP, como o campeonato feminino, ou o de Longboard, não tem nem metade da importância mediática, financeira e, quem sabe mesmo, desportiva, que os atletas da tour da cerveja e os poucos que lutam para lá chegar. Nem sequer vale a pena falar do Bodyboard, ou do Kneeboard, ou do Skimming, ou mesmo do Tow-in. Esses simplesmente foram atirados para uma espécie de limbo onde apenas os verdadeiros aficionados se esforçam por acreditar naquilo que mais lhes diz ao coração. Para quem, como eu, assistiu ao boom dos desportos ditos radicais no final dos anos 90 este estado das coisas não pode deixar de ser surpreendente e até mesmo um pouco triste. Algo correu mal ao longo do caminho para chegarmos ao estado em que estamos hoje. Eu tenho uma teoria sobre o assunto, que passa pelos CEO’s de marcas como Quiksilver, Billabong, Rip Curl e mais uma ou outra das grandes marcas de surfwear. Estes senhores, a determinada altura, decidiram entre eles que iam dirigir o grosso do dinheiro para o segmento 6’ 4’’ x 18 7/8 x 2 5/16. Acredito também que Kelly Slater e Andy Irons e uma muito bem explorada rivalidade entre os dois teve um papel determinante neste desenvolvimento. O facto é que a partir do virar do milénio o fosso entre o investimento das grandes companhias nos circuitos CT e QS e noutros campeonatos se tornou brutal ao ponto de inadmissível. E era bom tentar perceber porquê para alterar o estado das coisas.
Para mim esta discussão é importante porque sou dos que acredita que a competição desportiva é um dos elementos fundamentais para a credibilidade de um modo de vida numa sociedade plural e democrática. A competição é a grande montra de um desporto na sociedade, principalmente porque é através dela que o geral das pessoas toma contacto com um determinado desporto. E é também a competição que muitas vezes permite a solidez de uma indústria que por sua vez permita que quem quiser ganhar a vida nesse desporto o possa fazer. Sem competições devidamente estruturadas e mediatizadas a margem de progressão é mínima e isso só se consegue com investimento. O permanente autismo da indústria tem limitado o desenvolvimento dos desportos de ondas na sua totalidade focalizando o potencial de crescimento apenas num segmento em detrimento de todos os outros. A culpa está dos dois lados, tanto das empresas como dos atletas e dos adeptos e praticantes. Estes últimos porque abdicam do verdadeiro poder reivindicativo que tem na compra de material e equipamento que é o sustento das empresas. Por exemplo bodyboarders que compram surfwear da Quiksilver, ou da Rip Curl, ou de qualquer um dos grandes sem que estes reinvistam proporcionalmente no bodyboard. Os atletas porque muitas vezes se sujeitam às determinações das empresas penhorando assim a sua própria autonomia. Como é o caso de um sem número de jovens esperanças que aceitam contratos com retorno apenas de equipamentos e com cláusulas impróprias de objectivos. As empresas porque vampirizam abusivamente o universo das ondas com o fim único da performance financeira. Exemplo maior disto é a localização e as datas dos principais campeonatos da ASP. Há excepções, é claro, para este cenário, mas na generalidade isto é mesmo assim.
Passando ao caso português algumas coisas devem ser ditas, principalmente agora que vamos pela primeira vez ter um português na alta-roda mundial dos desportos de ondas. A qualificação do Tiago é um feito absolutamente extraordinário e merece todo o nosso elogio e orgulho, bem como a mesma quantidade de incentivo. E digo isto sabendo que em Portugal há outros campeões com resultados ainda mais significativos nomeadamente e principalmente no Bodyboard. Mas o que o Tiago pode conseguir em termos de exposição mediática e de credibilização é inigualável, não é melhor nem pior, é assim. A participação do Saca, no próximo ano, na Fosters World Tour é um momento crucial para a evolução de todo universo das ondas nacional. Tanto pelo efeito dinamizador que terá nos que virão depois dele, como também na credibilidade que as ondas podem vir a ter junto de potenciais investidores, venham eles ou não de dentro do meio. Todos os amantes de ondas em Portugal, mesmo os mais cépticos, devem ficar satisfeitos com o que o Tiago conseguiu. Da mesma maneira que devem ficar igualmente satisfeitos e orgulhosos com os feitos de um Manuel Centeno, por exemplo. As oportunidades que se abrem para o nosso país com estes resultados são extraordinárias e todos os amantes das ondas devem-se consciencializar disso e fazer um esforço comum para não perder esta oportunidade. São estes resultados que podem permitir a solidificação da indústria do Surf no nosso país, por forma a que cada vez mais pessoas possam dedicar a sua vida às ondas, em profissões dedicadas às ondas, independentemente do instrumento que utilizam para as apanhar. Há dezassete anos atrás escrevi uma carta para a SurfPortugal onde apelava mais ao menos ao mesmo que apelo aqui, mais união, mais respeito, mais alegria pelas vitórias dos outros e vontade de fazer igual e melhor. Parece que a roda fez o círculo completo, porém e felizmente, hoje estamos melhor do que há dezassete anos, mas o Surf português merece estar melhor do que está agora e é para isso que todos devemos trabalhar. Respeitando mais, exigindo mais, participando mais ou, apenas, surfando mais
Pedro Arruda, in ONDAS
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1 comentário:
Amen.Amanhã farei umas em tua honra.
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