quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Rituais (no regresso)




Há rituais que mais ninguém percebe. Porque raio alguém, às sete horas de uma manhã de Inverno, troca o conforto da cama pelo vento gelado de uma praia? Porque raio, quando o frio leva o mundo a ficar na areia, há sempre alguém que se lança mar adentro? Então e andar descalço em alcatrão quente? E ir à procura de ondas em montes de pedras infestados de ouriços? Há mesmo rituais que mais ninguém percebe.

Hoje ao almoço, numa conversa com um camarada acabadinho de sobreviver à sua primeira experiência nas ondas, lembrei-me de um momento que me marcou a vida. Num dia de temporal, a inexperiência fez com que me vestisse a rigor – de fato de neoprene e pés-de-pato – para ir visitar a minha amiga Baía. Nem tinha tinha ido ver como estava o mar e depois de um gelada caminhada até ao areal, tive o meu primeiro choque: além das ondas me parecerem gigantescas, o mar estava zangado. Espumas enormes iam desfazendo os poucos surfistas e bodyboarders presentes e não havia um centímetro onde a água não estivesse revolta. “Vai correr muito mal”, foi a primeira coisa que me passou pela cabeça.

Aos 16 anos, julgava-me indestrutível. O corpo era elástico, a moral estava alta e andava desejoso de provar aos surfistas, aqueles que já tinham barba, que até era um puto rijo. Não havia como fugir: tinha mesmo de me fazer à água. Depois de um aquecimento, estranhamente prolongado, lá fui. Lembro-me de remar e mergulhar, de ser metido na máquina de lavar roupa e de ser empurrado para a areia. Lembro-me de voltar a tentar, tentar, e tentar mais algumas vezes. Não sei quanto tempo demorei a passar a rebentação, mas lembro-me de chegar às traseiras das espumas mutantes. Não esqueço a descarga de adrenalina que senti assim que me apercebi que tinha sobrevivido. Não esqueço as saudações de respeito que os surfistas barbudos me lançaram, nem a vertigem da primeira onda. Mais do que tudo isso, não esqueço a primeira vez que parei – bem atrás da zona de impacto – para me sentar na minha prancha. Nesse momento, apercebi-me que estava sozinho e rodeado por dezenas de quilómetros quadrados de toneladas de água zangada. Não sou especialmente corajoso, nem tão pouco sou inconsciente, mas não tive medo. Senti-me pequenino e fiquei parado durante largos minutos. Só queria ver.
Nesse dia, ganhei respeito ao mar, mas deixei de o temer. Até hoje estou convencido que é na água salgada que estou mais seguro e nos últimos onze anos, ganhei barba e nunca deixei de a visitar regularmente. Aprendi a apaixonar-me pelas madrugadas de Sábado, pela a areia gelada, pelo cheiro a sal que trago para casa, pela água gelada que entra pelo colarinho do fato e até pela primeira espuma que me molha a cara. Apaixonei-me pelos rituais que ninguém percebe, mas que justificam todos os lugares comuns – que têm tanto de verdadeiros como de ridículos – que os surfistas dos areais repetem às meninas. Já fiz ondas de ressaca, constipado, com a digestão por fazer, em vagas de frio e, recentemente, até tenho ido ao mar com um joelho em vésperas de ir à faca. Tenho é de ir. Sempre.

A conversa de almoço e a (forte) possibilidade de ter de passar o próximo fim-de-semana a seco, fizeram-me chegar a uma conclusão: vou ter de comprar uma canoa. Quando for velhinho, com a barba branca, carregado de reumático e com os pulmões fodidos de tantos anos a fumar, dificilmente vou aguentar passar a rebentação com uma prancha de Bodyboard. Como não sobrevivo sem água salgada, o melhor é começar a poupar.
p.s: Este é o regresso à actividade de um blog que nunca chegou a fazer um grande take-off. Vamos lá ver se é desta

Sem comentários: