quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Super
O caminho desde o carro até à água é longo. Não importa que sejam 500 metros ou 5 metros. O fato vai enrolado e o peito esbranquiçado à mostra, realçando as linhas bronzeadas nas mãos e no pescoço.
Os ignorantes chamam-lhe bronze de camionista ou outras coisas que tal, mas a verdade é que estas marcas são a inveja dos iniciados que não dispõem desta fortuna de mais de de trezentas manhãs livres por ano.
Sim, o fato vai aberto porque é verão mas o caminho é tão longo... Nesta altura do ano em que as ondas são tão escassas, um dia como este, com o vento e a ondulação certas para fabricar aqueles tubos pesados e ocos é uma raridade que roça a miragem. Mas estes não enganam, se não os nativos não teriam baptizado este local de "Supertubos".
A única coisa ilusória aqui é mesmo o tamanho da onda. Se estiver perfeito, do parque de estacionamento parece sempre mais pequena e dócil. Ainda me lembro da primeira vez que ali entrei. Tenrinho, ainda mal sabia apanhar umas ondas na Costa da Caparica, olhei para o mar e pareceu-me "acessível". Esfomeado de mar, fui a correr equipar-me e mal dei por mim, estava a entrar.
Devia ter-me apercebido que algo estava errado assim que a primeira espuma me bateu no corpo. Não estava preparado para o impacto e quase caí para trás. Mesmo assim avancei, com a confiança abalada, é certo, mas avancei.
A remada até ao pico não foi difícil. Sentei-me na prancha e esperei. E, de repente, a suspeita do disparate atingiu-me com muito mais força que a primeira espuma: um monstruoso animal espreguiçou-se, o gigantesco lombo a ondular na minha direcção. O horizonte subiu de uma vez e aquela onda rolo compressor aproximava-se.
Ainda olhei, meio incrédulo por um segundo ou dois e depois comecei a remar a toda a velocidade para passar por cima do que aí vinha antes que o animal abrisse a boca...passei.
Tentando não entrar em pânico, tão preocupado em não deixar transparecer que era um puto metido num campeonato de homens como em, pura e simplesmente, não sair dali afogado, deixei passar mais alguns daqueles grandes espamos de água, esperando pelo fim dos set e de uma providencial ondinha que me tirasse dali.
Escolhi uma ponta de um triângulo de água e tentei apanhar a onda. Mais uma surpresa: o que na Costa são rampas gordas e generosas, ali são substituídas por buracos que transformam mesmo a onda mais pequena numa parede alta e íngreme.
Quase por reflexo puxei tudo para trás: prancha, corpo e alma.
Ainda mal refeito da surpresa, olho para trás e ia ficando sem ar: o horizonte voltava a subir mais uns palmos e eu estava em plena zona de impacto, apanhado a meio caminho entre a areia e o pico. Comecei a remar que nem um condenado. E nunca esta expressão caiu tão bem.
A parede de água verde-acinzentada caiu em cima de mim com uma força como nunca tinha experimentado. Um cruzamento de qualquer coisa como ser atropelado por um carro a alta-velocidade e o ser lançado numa máquina de lavar roupa.
As pernas passaram-me por cima da cabeça, o braço esquerdo não o sentia e o direito parecia estar a ser arrancado pelo chop que me unia à prancha. Passaram-se alguns segundos que me pareceram uma eternidade até respirar.
Levantei a cabeça daquele turbilhão apenas para ver outro animal dar o bote. Mais uns segundos de agonia e falta de ar para, milagrosamente perceber que tinha sido arrastado para a beira do areal.
O alívio...e a vergonha. Ainda meio torto e desequilibrado, marchei dali para fora tentando manter a compustura diante dos poucos inquilinos acidentais do areal invernoso. Percebo que ainda não estava maduro para uma onda de reputação mundial. Rápida, técnica, exigente, pesada são alguns dos adjectivos que ouvi mais tarde a propósito da onda dos Super, sempre invocada com um misto de entusiasmo e respeito.
Quase dois anos depois, com mais alguns sustos e outras tantas pequenas glórias no currículo voltei ao campo de batalha, mas isso é história para outro dia...
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